quinta-feira, 27 de março de 2008

o temporal.

Gritos de tempestade invadiam a noite limpa.
O vento frio dançava ríspido pelos seus cabelos, no momento em que mais um relâmpago riscava o céu escuro. Aurora deliciava-se ao contar os segundos antecedentes de uma resposta esbravejante de mais uma trovoada.
Era bonito de se ver tamanho contraste e desordem.
Observava pensativa o barulho da água lavando uniformemente o asfalto cinza e triste. Assistia o escorregar daquilo que parecia um pranto, descendo arrebatador pelas ladeiras vazias até chegar ao ralo.
Ela queria descer as escadas do prédio e lambuzar-se de chuva e riso.
Valsaria nas poças de lama. Deixaria as águas banharem seu rosto claro e invadirem em respingos o seu paladar. Ficaria assim até seus cabelos se encharcarem, suas mãos se engelharem e ela sentisse o gosto da chuva no céu da boca.
Satisfeita, subiria as escadas correndo, molhando os corredores com seus passos largos. Os cabelos negros cairiam alegres sobre a camiseta verde, colada no peito. Secaria os pés com vã cautela no tapete da sala, afim de que sua mãe não descobrisse a travessura e depois deleitaria-se na água quentinha do chuveiro, que tomaria poderoso todo o frio da sua pele.
Queria abraçar-se à toalha seca e assistir ao final da chuva, como se estivesse na platéia de um belo show.
Não o fez.
Sentiu com os dedos as gotinhas redondas que se formaram no vidro da janela. Juntas, escorregara,-se como lágrimas aborrecidas, tão inconformadas como Aurora também estava.
Havia perdido o espetáculo porque tem medo do trovão.

quinta-feira, 13 de março de 2008

ritual.

Recolho toda a tristeza antiga que ainda me resta e me atormenta.
Fito-me com olhos vermelhos que refrescam meu rosto refletido no espelho sujo. Escolho o ângulo em que me sinto mais bela, e tal beleza distrai soluços pausados que se desinxam baixinhos afim de não me condenarem.
Grito desamores mudos por entre versos de edredon. Quero molhar todo o meu corpo de lágrimas e quem sabe assim secar minha alma, mas o pranto foi-se embora saciado. Me alivia.
Abraço minhas pernas e escondo meu rosto nos cabelos curtos, os sempre reféns de meus subterfúgios. Não me acalentam mais, e pouco aquecem minha nuca, acostumada com tais revoluções aflitas.
Visto meus ombros claros de menina-moça que não vi crescer, como se o tempo escorregasse arredio pelos meus dedos tortos, cedendo rastros de memória à minha escrita densa.
Beijo meus lábios refletidos, inchados de pranto e de um vermelho doce. Meus olhos roucos me sussurram o canto da ciranda triste que não danço mais.
Tenho dezoito anos de idade e não caibo mais em mim.