quinta-feira, 27 de março de 2008

o temporal.

Gritos de tempestade invadiam a noite limpa.
O vento frio dançava ríspido pelos seus cabelos, no momento em que mais um relâmpago riscava o céu escuro. Aurora deliciava-se ao contar os segundos antecedentes de uma resposta esbravejante de mais uma trovoada.
Era bonito de se ver tamanho contraste e desordem.
Observava pensativa o barulho da água lavando uniformemente o asfalto cinza e triste. Assistia o escorregar daquilo que parecia um pranto, descendo arrebatador pelas ladeiras vazias até chegar ao ralo.
Ela queria descer as escadas do prédio e lambuzar-se de chuva e riso.
Valsaria nas poças de lama. Deixaria as águas banharem seu rosto claro e invadirem em respingos o seu paladar. Ficaria assim até seus cabelos se encharcarem, suas mãos se engelharem e ela sentisse o gosto da chuva no céu da boca.
Satisfeita, subiria as escadas correndo, molhando os corredores com seus passos largos. Os cabelos negros cairiam alegres sobre a camiseta verde, colada no peito. Secaria os pés com vã cautela no tapete da sala, afim de que sua mãe não descobrisse a travessura e depois deleitaria-se na água quentinha do chuveiro, que tomaria poderoso todo o frio da sua pele.
Queria abraçar-se à toalha seca e assistir ao final da chuva, como se estivesse na platéia de um belo show.
Não o fez.
Sentiu com os dedos as gotinhas redondas que se formaram no vidro da janela. Juntas, escorregara,-se como lágrimas aborrecidas, tão inconformadas como Aurora também estava.
Havia perdido o espetáculo porque tem medo do trovão.

3 comentários:

Gusthavo disse...

Mira:
Pequena Mila
Cria, cuida clima
Sempre salva, o cinza dia
Causando cálida desritimia
Já não sabe, já não cabe
Transborda em si de poesia

Natacha disse...

eu tenho mais medo dos dias de sol.

Maria Amélia disse...

A Aurora andava, por esses tempos, pusilânime. Mas, agora, com o pé seguro no chão molhado de certezas e declarações, não cabe a ela ser covarde mais. Ela pode até entrar de fininho na tempestade, não por medo de ser frio como ela já fora, mas por precaução do instinto. Sem muita sede ao pote, sem muita perspectiva de gostos, se serenos, se agridoce. Aurora quer encarar o real com olhos não de observador e intérprete, mas com olhos concretos de quem vive num presente enleio.